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Quando morrer, talvez tenha uma ideia formada sobre mim, se o destino me der esse luxo.

Thursday, April 20, 2006

Crónica Filme - Cidade de Deus


Cidade de Deus

Se alguém ainda não viu este filme, o que não acredito, adianto-vos que se trata de uma excelente produção brasileira, com actores amadores na sua quase totalidade e que mais não é do que um retrato inesquecível da vida numa favela.
“Buscapé” só queria ser fotografo de jornal.
“Buscapé” é a alcunha de um jovem negro, que nasce numa favela chamada Cidade de Deus, e cujo trajecto de vida vamos acompanhando, deliciados com os seus círculos paralelos de amizades e conhecimentos. Faz lembrar, de certo modo, “Era uma vez na América”, esse épico cinéfilo dos anos 80. Com frequentes flashbacks, com referências constantes em voz off do narrador omnipresente, à medida que vamos conhecendo as personagens e as teias que o filme faz, vamos percebendo que uma favela é um micro mundo, uma espécie de tubo de ensaio, onde, de uma forma intensa e concentrada, temos o que move este mundo, isto é, a luta constante entre o bem e o mal.
“Buscapé só queria ser alguém sem precisar “matar”.
Sem manicaísmos bacocos e contrastantes, pois nenhum mal é inteiramente mau nem nenhum bem é absolutamente bom, vamos constatando o frágil equilíbrio entre os bons e os maus, onde até “Buscapé” se vê tentado a procurar o respeito ou algo com que pudesse comprar a distinção, através de uma arma.
A Cidade de Deus vive de dois mitos, o “Zé Pequeno” que é a regra que anula a excepção e o “Mané Galinha”, a excepção que confirma a regra. O primeiro, alguém que em pequeno se habituou a matar e cujo amigo, “Bédé”, qual consciência, lhe vai temperando o instinto assassino. O segundo, que se converteu à Lei da Bala por uma fatalidade, e que apesar de não querer matar inocentes, cedo se apercebe que, neste mundo, se deixar os inimigos para trás e lhes virar as costas no leito da morte, em breve estes lhes saltarão à garganta. E de que maneira...
Numa favela, a justiça tem o peso de uma bala e o Bem sempre perde para o Mal pois este joga com um aliado de peso, a Sociedade, que estrangula e asfixia quem não quer seguir este caminho.
“Buscapé” só queria perder a virgindade.
Na favela, estes dois mitos são a Lei, são Deus, são o Tribunal, são a doutrina de que a Vingança e a Arma são uma só. São o axioma incontornável de que na favela só existe inferno e purgatório. Inferno daqueles que matam para vingarem um estalo, purgatório dos outros cujo crime os espera como um certo e fatal destino. Toda a gente vive directo do berço para a idade adulta. Toda a gente aprende às suas custas e normalmente da pior forma, da forma mais violenta, dura e brutal. Na favela vale tudo menos ser bom. Na favela ser culto é conseguir ler as imagens de um jornal. Na favela ser religioso é rezar antes de assaltar para que tudo corra pelo melhor.
Cidade de Deus tem planos incríveis e ângulos verdadeiramente excepcionais que aportam fielmente a expressão das personagens, a dinâmica do filme, e a velocidade a que a vida sempre passa.
“Buscapé” só queria ser Wilson Rodrigues, alguém com mais do que uma alcunha.

Eugénio Rodrigues - 20.03.05
(foto de Francisco Rodrigues)

2 Comments:

Blogger C.R. said...

Concordo plenamente , não tenho actualizado nada do que penso ou escrevo, mas é com toda a certeza uma obra memorável .. em qualquer circunstancia e apesar de realmente revelar uma imensa agressividade.. demasiado, para quem sabe o que é.

6:06 PM  
Blogger Pierrot said...

Obrigado C.R.
É sempre bom saber que afinal não sentimos a "vida" sozinhos, quanto mais não seja num filme que não deixa ninguém incólume.
Abraço
Pierrot

3:23 PM  

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